Bang. Tiro.

'Dinner is served' by Marco Sanges


A caixa das memórias anda a ser remexida. Giro. Nunca antes me tinha apercebido da quantidade de informação indisponível, inacessível, que o subconsciente (ou consciente?) tinha remetido para o recycle bin. Desapareceu tudo sem sequer o barulhinho crunchy do meu laptop.

Onde ficaram esses dias, noites, pessoas, coisas, cartas? Sinto cheiros. Alguns. Acho. Quando me invadem algo se aviva em mim, mas sem força, sem entusiasmo, sem provocar a reacção turbulenta das grandes paixões. A cabeça busca pistas, mas o coração não acelera. Ou vice-versa. O banco de dados está corrompido e com ele o meu passado que não cola com nada.

Não sou a mesma pessoa. Nem serei. Nem estou triste por isso. Nostálgica, sim, por vezes. Saudades de uma inocência que se perde, se transforma, se aplica nas pequenas coisas que doamos a uma experiência tantas vezes ingrata, infrutífera, desmotivante. Frustrante. Perdi parte da minha história, e isso quer dizer que a lição não foi aprendida. Ou terá sido? Como saber? É verdade que já não caio nos mesmos erros (a maior parte das vezes!) mas é verdade também que há erros em que é bom caír, de mergulho, com as mãos ao longo do corpo, head first. Já não sou capaz, perdi a coragem. Meço, penso, calculo, recuo, e no entretanto o avião já decolou e eu fiquei em terra, sem tão pouco acenar.

Fecho-me em copas e desculpas de pau. Só tenho saudades de quem não está e assim que o posso dizer o silêncio em mim transborda e não chego ao outro lado. Não sei porquê. Amo tanto. Amo-te tanto. Amo-o tanto. Amores diferentes (não se ama um homem como se ama uma mulher) mas conceber a vida sem uma das partes dói. Custa. Cava em mim. E não sei dizê-lo. Sei. Mas não sei. Porque as palavras que saem parecem vir de outra boca, de outro ser, de outro amor. Revestida a medo, essa substância viscosa que nos cola as pestanas e entope a garganta, arrasto-me por entre quem amo sempre demasiado ocupada, a fazer coisas, a ser a heroína da minha história, a fazer crer – nem a mim própria... – que não falo de amor porque não há tempo para o coração. E eu que só tenho coração. Quem adivinhará?

Que os dias de hoje sejam novos, frescos. Que o amanhã seja melhor. Que as noites de paixão que me tiram o sono, que me fazem perder o fôlego, digam o que não sou capaz. Que possam ler nos meus olhos e entre gemidos aquilo que ainda não posso dizer. Porque não posso. Porque tenho medo. Porque estou a guardar cada pedacinho de coragem que encontro em mim numa caixinha. Um dia junto-os todos e atiro-tos com toda a força do coração. Um dia digo que te amo. Que o amo. E talvez nesse dia seja mais feliz. Talvez me deixe ir. Talvez fique para sempre, por ser livre.

‘As pessoas livres são livres para tudo, até para se prenderem.’

Quem te disse, meu amor, que não estou presa? Quem te disse que a minha fuga não é de mim própria? Queres que me ame, me respeite, me (re)considere. Faço-o. Porque tu me pedes. Porque tudo o que dizes me faz sentido e sentir. Porque tu és tu, tu és tudo, tu és todo. Porque por ti iria até ao fim do mundo.

Quero deixar-me ir.

Quando era pequena e ia com os meus pais a Andorra comprar cadernos para a escola e relógios digitais a metade do preço, havia uns bonecos, daqueles em que enfias uma moeda e sai um brinde (brindes bons, à antiga) que diziam numa voz robotizada e estupidamente infantil:

‘Hola! Yo quiero ser como tu!’

Meu amor... eu quero ser como tu.


‘Contigo aprendi que o que dói às aves não é o serem atingidas, mas que, uma vez atingidas, o caçador não repare na sua queda.’

...

Como posso não te amar até ao fim de todos os dias?



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